BREVE INCURSÃO EM GARIMPOS DE
SELVA
Cronica
Foi uma viagem atípica, de
contrastes ante a beleza e exuberancia da floresta e rios amazônicos e os
perigos inerentes à maneira de viver e trabalhar naquele espaço quase inóspito
da selva amazônica. Chamou-me à atenção o grande afluxo de pilotos e mecânicos
de aviões à região dos garimpos de ouro no entorno da cidade de Itaituba, no
sul do Estado do Pará, já que o acesso às lavras do garimpo só era possível a
bordo de aviões monomotores, pela distancia e imensidão da floresta.
No final do ano de 1981 brevetei-me
piloto comercial de avião tendo passado por dificuldades financeiras pelo alto
custo do aprendizado, eu tinha em mente trabalhar como piloto para satisfazer o
ego e tambem ganhar dinheiro já que nos garimpos os pilotos sobreviventes
ganhavam muito bem. Digo “sobreviventes” porque eram muitos os que morriam em
acidentes, pelo quanto eram arriscadas e perigosas as operações nas pistas de
grarimo. Em contato com os irmãos Paulo e Renato, meus primos, que para lá
rumaram havia algum tempo em busca de trabalho, pois eram mecânicos de aviões e
tornaram-se arrendatários de oficina de aeronaves na Empresa Crepuri Taxi
Aéreo, cuja frota era composta por 12 aeronaves, sendo: 6 Cessna 210, 4 Minuano e 2 Carioca. Resolvi conhecer e sondar as possibilidades
de trabalhar como piloto, apoiado por meus primos.
Viajei de Araçatuba, cidade natal de
meus primos e seus familiares com destino a Cuiabá, capital de Mato Grosso, em
companhia do Renato, o mais novo dos dois irmãos, a bordo de um avião
turbo-helice, modelo Fokker da empresa aérea TABA, Transporte Aéreo da Bacia
Amazônica, e de lá, pela mesma companhia, seguimos até Itaituba, num aparelho
também Fokker, porem muito mais velho e barulhento que o anterior, esse não tinha
comissárias de bordo, só comissários. Nesse voo, eu e Renato esvasiamos uma
garrafa de natu nobilis, pois comecei a
sentir os primeiros sinais do local hostil ao qual eu me dirigia já na escala do voo na cidade de Alta
Floresta, com pista de pouso asfaltada e acomodações do aeroporto construidas
em madeira, tendo dos dois lados da pista de pouso a floresta densa com enormes
troncos de arvores. No momento do pouso estavamos sob chuva moderada, quando
encostou ao lado do avião o caminhão tanque com o combustível Jet A1, querosene
de aviação e o abastecedor com um guarda chuva protegendo a entrada do tanque
sobre a sas do avião, o abasteceu.
Não posso me esquecer de que as minhas passagens aéreas foram custeadas pelo
Renato, meu primo e companheiro de viagem, tal era crítica minha situação
financeira no ato da viagem. Tentei ressarci-lo dos custos tempos depois porem
ele não o aceitou. Durante os dois voos, solicitei aos comandantes viajar na
cabine, e fui autorizado por ambos, pois eu estava ávido por saber o quanto
possível sobre os voos naquela região de floresta, e tive muita receptividade
de ambos durante os voos.
Chegando em Itaituba fui hospedado
na casa de meus primos, não posso esquecer de que o Zezinho, irmão cacula dos
dois também dividia a moradia e o trabalho com eles. Itaituba é localizada à
margem esquerda do rio Tapajós, no Sul do Estado do Pará. Morávamos a menos de
200 metros da margem esquerda do rio, sob um calor insuportável de mais de 40º
e lembro me de que para dormir, só o conseguiamos com o ar condicionado ligado
a noite toda. Não havia chuveiro elétrico, a água vinda do Rio Tapajós era
naturalmente morna.
Já no meu primeiro dia no local, fiu
apresentado a um piloto, o Florindo, um paulista da região Noroeste do Estado
de São Paulo que prontamente convidou-me a acompanhá-lo ao primeiro voo do dia
a um garimpo que tinha o estranho nome de “invasão” o que denotava hostilidade
nas relações humanas, por conflitos de interesses. Esse garimpo fazia parte do
complexo de garimpos pertencentes à Fazenda Crepurí. O voo tinha duração de
duas horas e meia para ida e a mesma duração na volta, e voávamos a grande
altitude e sempre que possível próximo à margem de grandes rios, por prevenção
de alguma emergência durante a viagem sobre a floresta, com o rádio de comunicação
em frequencia livre, ligado, pois o espaço aéreo na região tinha tráfego
intenso. Só o piloto tinha banco e cinto de segurança, eu ia sentado sobre uma
caixa de madeira daquelas que acondicionam legumes e o restante do interior do
avião era repleto de carga, na maioria das vezes alimentos, gaz de cosinha,
combustíveis, ferramentas e outros.
Ao avistar a pista de pouso não
acreditei ser posível pousar no que parecia ser uma estrada de chão batido,
estreita, curta e com várias ondulações, o que fazia o avião sacolejar apesar
dos 500 quilos de mercadoria a bordo. Aos lados e nas cabeceiras da pista havia
um grande trecho de floresta devastado, com os troncos de árvores espalhados em
todas as direções e chamuscados pelo fogo, para viabilizar a aproximação e o
pouso dos aviões. Foi uma experiência única e inimaginável até então e uma
grande sensação de alívio ao ver a parada do motor do avião, para descarregá-lo
rapidamente e voar mais duas horas e meia de volta à base em Itaituba. Enquanto
descarregavamos o avião, pude ver além do final da pista a parte trazeira de um
avião que não parou a tempo e precipitou num declive deixando à mostra só o
profundor e o leme direcional.
De volta a Itaituba, Paulo
perguntou-me sobre minha experiência no primeiro voo e avisou-me de que caso eu
quisesse, teria outro voo para um
garimpo próximo a Jacaréacanga, uma base aérea já em território
amazonense. Naquela noite, jantamos em um restaurante que ficava no centro
comercial da cidade, fui alí apresentado a algumas pessoas, entre elas o senhor
Lourival Lemos, tambem conhecido por “Rei da voz”, proprietário da Fazenda
Crepurí onde se encontrava os garimpos
crepuri, sem ilha e cuiú-cuiú, alem das oficinas e de razoável frota de aviões e
aínda a criação de gado para abastecer de carne a cidade e garimpos. Renato disse ao senhor Lourival que
eu fora para lá com o intuito de voar e ele prontamente ordenou que
disponibilizassem um avião para que eu comessasse a voar imediatamente.
Agradeci-o, tendo em mente a remota possibilidade de pilotar um avião naquelas
condições fora de padrão. Conheci também naquela noite, no mesmo complexo
comercial, um cassino, coisa inédita para mim até então, contudo, já que estava
ali, arrisquei a sorte, joguei e perdi alguns parcos cruzeiros, o que era a
moeda corrente à época.
Na manhã seguinte fui apresentado a
um piloto o Vanilson Alves, a quem chamavam tambem por “pé”, por ele ter uma cicatriz muito grande em um dos pés causada
por um sério acidente de que fora vítima, ao saltar de paraquedas. Voamos por
duas horas e meia até o destino, um vale ladeado por serras e tendo à cabeceira
da pista por onde procede os pousos, uma enorme castanheira com seus grandes
galhos superiores cortados a motoserra para viabilizar a passagem aos aviões
durante os pousos e as decolagens, o que é feito assustadoramente ao passarmos
muito próximo pelo quão crítica é a operação no local; além de que nas
decolagens só podem estar a bordo o piloto e um passageiro, caso contrário o
avião não passa por sobre os troncos da castanheira. Enquanto descarregavamos o
avião, solicitaram ao pé, que levasse um senhor que passava muito mal com
malária para Itaituba, com o que o pé prontamente concordou, porem disse que me
levaria até a base aérea de jacareacanga distante de lá meia hora de voo e lá
eu o esperasse porque o avião não sairia daquela pista com tres pessoas a
bordo. Após uma hora de espera em Jacareacanga, tempo em que travei batalha com
borrachudos, chegaram, o pé e o enfermo, a seguir chegou na caçamba de uma
caminhonete uma senhora doente com malária e tres garimpeiros. Voamos por duas
horas e meia de volta a Itaituba, sendo que eu e os tres garimpeiros sadios,
desembarcamos na cabeceira oposta da pista de pouso para que o piloto não fosse
penalizado pelo excesso de passageiros, pela Infraero.
À minha chegada ao aeroporto meus
primos me deram a notícia do acidente com o Florindo, o piloto com quem eu
voara no dia anterior, e por sorte não estava com ele no voo, pois a carga do
avião que ao pilonar, pressionou-o com o seu assento ao painel do avião, e ele
não morreu por pouco, sendo hospitalizado por alguns dias. Fomos ao hospital
visitá-lo e eu perguntei-lhe: Você contunuará a voar? Ele respondeu-me: - Assim
que tiver alta volto a voar, tenho minha família para sustentar.
Na cidade, todos os dias deparavamos
com com situações inéditas e chocantes, havia duas famílias de rivais
nordestinos, poderosos financeiramente que se degladiavam pelo poder econômico
e por isso morriam de tempos em tempos, membros de ambas. Certo dia eu e meu
primo Paulo, fomos a uma loja de ferragens para comprar uma bomba de poço e na
entrada da loja havia um homem trajando um uniforme camuflado como aqueles que
usam os soldados do exercito, portando à mostra uma pistola à cintura e um
fusil às mãos, a título de defender os proprietários de emboscada inimiga. Em
uma das emboscadas, em que assassinaram vários membros da família, entre os
mortos estava uma grávida e a seu lado o feto de seu filho morto, retirado do
ventre da mãe pelos assassinos.
Paulo e Renato me contavam que em
determinados garimpos, nas barracas dos acampamentos cobertas por lona preta de
plastico, onde os garimpeiros dormiam, à noite morriam muitas pessoas por balas
perdidas resultado de brigas ou tiros dados a esmo por garimpeiros embriagados.
Depois de algum tempo, cavavam valas no interior das barracas como se fossem
sepulturas, para que ali pudessem dormir livres do perigo de serem alvejados e
mortos.
Outro tipo de assassinato bárbaro
era cometido contra os garimpeiros mergulhadores que tomavam parte nas equipes
das barcaças apoitadas no leito dos rios. Nessas barcaças havia todo o
equipamento de extração por sucção e peneiramento, com bombas possantes movidas
a óleo diesel, tendo mangueira de cerca
de 80 milímetros de diâmetro para sucçionar do fundo do rio: areia, cascalho e
seixos de onde separavam o ouro quando houvesse. O garimpeiro mergulhador
descia ao fundo do rio tendo um peso às costas para que lá pudesse permanecer
sem flutuar, e também tinha uma outra mangueira de menor diâmetro que levava ar
forçado ao respiradouro além de uma corda presa à cintura pela qual através de
pequenos toques em forma de código ele sinalizava aos que estavam a bordo
aliviarem-na para a locomoção ou que o puxassem à superfície quando necessário.
O grupo a bordo da barcaça, ciente das posses do companheiro em razoável
quantidade de ouro, mancomunados em cruel e sórdida ação criminosa,
interrompiam o envio de ar para que ele morresse asfixiado ou afogado caso se
safasse do respiradouro em situação de desespero, também não atendiam aos
toques em código na corda para o içamento e ao contrário cortavam-na para que a
correnteza do rio o levasse. Certos da morte do desventurado colega,
apossavam-se do ouro e outros pertences de relativo valor e sumiam na mata em
direção a outros garimpos distantes dali.
Certo domingo à tarde vi um cachorro
vira latas de porte médio pulando pela rua com somente uma pata dianteira e uma
trazeira cruzadas, a cena me deixou penalizado, então o Paulo me disse: - Essa
é uma das barbaridades que os garimpeiros embriagados fazem em fins de semana
ociosos. A cadeia da cidade fica junto à calçada e as grades com prisioneiros
enroscados a elas, como que atores representando aos transeuntes parece não
chocar os moradores locais, parece comum como são comuns para nós as vitrines
das lojas nas áreas centrais das cidades.
Às tardes íamos a uma ilha do rio
Tapajós a bordo de uma pequena lancha
do Paulo, meu primo, em um bar de propriedade de uma jovem senhora, que
lá vivia com seu bebê. Lá tomávamos cerveja e comíamos tira gosto vendo as
travessuras de um pequeno macaco que costumava vir beber cerveja à mesa com os
fregueses, ele era uma espécie de mascote do estabelecimento.
Naquele lugar, nem tudo era
sobressalto e acontecimentos desagradáveis e tristes, contava meu primo Paulo,
entre tantos acontecimentos engraçados, dois ficaram reclusos em minha memória.
Certo dia, indo do aeroporto à cidade, distante cercas de tres a quatro
quilômetros, havia uma caminhonete parada ao lado da estrada e um caixão com um
cadáver sobre a areia e o motorista trocando o pneu da caminhonete. Paulo
dirigiu-se ao motorista e perguntou-lhe: - Amigo, o que aconteceu? O outro
responde: - Tive que parar para trocar o pneu furado da caminhonete. – E porque
você tirou o caixão da caçamba do veículo? – É em respeito ao finado. Paulo
saiu rindo sozinho do que vira e ouvira.
Num outro dia, no centro comercial
da cidade em horário das crianças em idade escolar voltarem para casa com as
mães, Paulinho vira, o que não era surpresa às pessoas pelas ruas; animais
domésticos de todos os portes, só que nesse dia estavam lá, em meio ao
burburinho de pessoas, um casal de equinos copulando tranquilamente no meio da
rua para surpresa e deleite dos escolares, que sob puxôes de orelhas e sopapos
de suas mães envergonhadas e sob protesto diziam a seus filhos: - Olha pra
frente menino e caminha rápido senão vai apanhar! Paulinho dizia ter rido muito e ria cada vez
que nos contava esse incomum flagrante.
Daquela época só se tem uma certeza,
o ouro que saiu daqueles garimpos está espalhado, ornamentando pescoços,
orelhas, braços, mãos, bocas e outras
partes da geografia humana de muitas pessoas pelo Brasil e pelo mundo; as
histórias, certamente mais tristes que alegres, estão à medida em que o tempo
passa, mais raras nas mentes e nos relatos dos seres humanos que la habitaram
ou lá estiveram de passagem, remanescentes daquela época de sonhos com a
prosperidade, de falência material e humana; e de mim, humilde e breve protagonista
daquelas plagas, tenham este pequeno fragmento de História.
Enéas
Antonio Pires – Graduado em letras – Português/Inglês
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