sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Tributo a um desbravador


TRIBUTO A UM DESBRAVADOR


Crônica



João Bento da Costa era o nome
do protagonista desta narrativa,o qual nascera no dia do aniversário da
cidade de São Paulo, 25 de Janeiro de
1887, na cidade de Cajuru, região nordeste do Estado de São Paulo, próximo à
divisa de Minas Gerais.

Àquela época o sonho de todo jovem ao
completar dezoito anos de idade era ter um emprego e casar-se. Assim fizera meu avô, não fugindo à regra
saiu de sua cidade natal mudando-se para Pirajuí, cidade próxima de onde se
iniciara a construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil.

A Noroeste do
Brasil teve o seu início em Bauru, derivando da ferrovia que ligava São Paulo a
Bauru e Estado do Paraná, e seguiu o rumo Noroeste, cruzando os Estados de São
Paulo e Mato Grosso até a cidade de Corumbá, na divisa com a Bolívia,
perfazendo uma extensão de 1097 Kilômetros, onde termina o trecho brasileiro. Mas
não para por aí, a Noroeste percorre o território boliviano em 525 kilômetros
até a cidade de Santa Cruz de La
Sierra
, cujo trecho tem o nome de Brasil-Bolívia, que é
tratado popularmente por “ferrovia da morte”, por motivos óbvios.

Em 1905, sob o
mandato do então presidente da república, Francisco de Paula Rodrigues Alves
(1902-1906), iniciara-se a construção da ferrovia pela empresa construtora
Machado de Melo, cujo proprietário era um dos nove acionistas da empresa belga
“Générale de Chemins de fer et de travaux publics”. A força usada na
construção, no que implica a remoção de arvores e troncos, transporte de terra
para, ora transpor aclives, ora aplainar declives, transporte de trilhos,
dormentes, brita, e todo o material e equipamentos em uso para a conclusão da
via férrea era através da tração animal.

Grandes tropas
de burros puxando carroças eram usadas nessas construções, e tal era a rotina
de trabalho repetitiva, que o condicionamento dos animais dispensava
condutores, tendo um homem no local de carregar e outro no de descarregar a carroça só para dar o aviso de parar e partir aos animais.

Mas porque
burros? Esse detalhe pode suscitar dúvidas e então as esclareço: entre os
animais cavalares e os asininos, esses são mais rústicos e resistentes que aqueles para o trabalho pesado por
períodos longos, por meses e anos a fio. Visto do alto, dizia meu avô, - os
burros alinhados com suas carroças eram como formigas silenciosas em seu
mister, organizadas em suas trilhas.

O objetivo das autoridades brasileiras com a
construção da ferrovia era ligar o Oceano Atlântico ao Pacífico visando a
viabilidade de escoamento de produtos brasileiros, principalmente café e açúcar para os continentes
americano e europeu entre outros.

No ano de 1905
completara meu avô 18 anos. Fora ele
contratado e durante quatro anos, sob muitos percalços ajudou a construir o
trecho de ferrovia entre Bauru e Andradina. Muitos foram os sofrimentos,
causados por doenças como: malária, chagas, febre amarela, e tantas outras
doenças tropicais transmitidas por insetos e pela insalubridade da floresta.

Além dos
recursos precários para a sobrevivência, tais como: morar em barracões cobertos
por lona, com iluminação feita por lampiões a querosene, consumir água dos
riachos pela natureza itinerante dos
trabalhos, uma vez que a cada trecho de ferrovia construída seguia-se
embrenhando pela floresta e levando
consigo a rude e elementar infra-estrutura, rumo ao destino. Os trabalhadores
enfrentavam alem de todas as dificuldades mencionadas, a ganância e a exploração das subempreiteiras, ávidas por
lucros fabulosos, não fugindo à tradição do capitalismo, que aqui se instalara
com a colonização portuguesa, pois essas lhes pagavam salários ínfimos. Esses trabalhadores enfrentavam também o
ataque de cobras e insetos peçonhentos, onças e emboscadas freqüentes de índios
inconformados com a invasão de seu território, a selva bruta.

Ao ser
contratado, antes mesmo de receber as ferramentas de trabalho, ofereceram-lhe
uma carabina e uma bolsa cheia de balas (projéteis), para defender-se de onças
e índios, tal era o perigo, a iminência do contato com tais inimigos.

Meu avô recusou-se laconicamente a receber a
arma, explicando-lhes que só Deus o protegeria, apegado que era à sua fé
inabalável; realmente nada de mal lhe acontecera nesses quatro anos em que colegas seus
portando carabinas pereceram, vítimas de ataques, surpreendidos por índios.

Os numerosos
grupos de trabalhadores alojados em barracões, sempre às margens de rios ou
riachos, pela facilidade do uso da água, reuniam-se em longas conversas nos
finais de tardes após o dia de trabalho. Como em todo grupo numeroso de
pessoas, há sempre alguém que se destaca em comportamento social, dos demais e,
contava meu avô haver no seu grupo um homem por nome Ataíde. Ataíde era diferente do grupo em suas peripécias e certo início de noite após
banhar-se no rio, retornara completamente nu pondo em sobressalto todo o grupo
que estava do lado externo do barracão, tendo apontadas para si pelo menos
quatro carabinas prontas para o disparo. Foi um grande alvoroço, pelo susto todo o grupo pensou tratar-se de emboscada de índios, ao que ele levantou
os braços e gritou seu nome, temeroso pela iminência do risco de morte. Ataíde,
cabisbaixo, ouviu de seus companheiros severas criticas e advertências e
comprometeu-se a não mais repetir tal afronta, que por pouco não lhe custara a
vida.

Ao longo da ferrovia, distante da sua origem cerca de 250
quilômetros
, a segunda cidade aquém de Araçatuba é
Coroados, nome dado em homenagem indireta dos desbravadores aos índios, não por
simpatia aos nativos, pois não tinham motivos para isso, já que para concluírem
o trecho de alguns kilômetros de ferrovia que cortavam o lugarejo a companhia
construtora teve sérios prejuízos ao ter que refazer por varias vezes o mesmo
trabalho, pois o que se fazia durante o dia os índios destruíam à noite, sendo
necessária a intervenção do exército, provocando muitas baixas entre os nativos. Coroados, o nome escolhido para o
local era, numa alusão aos cocares de penas que os índios usavam à cabeça,
semelhantes a coroas.

Tambem, na
cidade de Guaiçara, não muito distante de Bauru, os trabalhadores tiveram
conflitos com os índios, sendo atacados em emboscadas e tendo seus trabalhos destruídos durante as noites. Na
cidade de Penápolis havia um fazendeiro por nome João Tupina, que ao construir
sua casa o fizera de maneira estratégica, com muitas e altas janelas e ao
centro da grande sala, sobre a mesa, havia constantemente várias carabinas
carregadas para que quando atacados pelos índios, todos da casa inclusive as mulheres faziam uso das armas
contra os inimigos. O gado do fazendeiro passava as noites fechado no curral,
que era guardado por vários cachorros amarrados ao redor a fim de denunciar a
proximidade dos índios.

Contava meu avô que certa vez em um vilarejo
de nome Napoleão, hoje extinto, e submerso nas águas do lago da usina hidrelétrica
de Avanhandava, mas que conheci na minha
infância quando viajava de trem entre Penápolis, Birigui e Araçatuba
acompanhado de meus pais, de onde tenho apenas ínfimos resquicios de imagem à
mente. Napoleão localizava-se entre Penápolis e Glicério, e certo dia parara o
trem para ser abastecido de água e lenha, e de surpresa apareceu algo em torno
de uma centena de índios, todos com cipós compridos atados às cinturas e
imediatamente ataram a outra ponta do
cipó à locomotiva; presumivelmente com a intenção de detê-la.

O
“maquinista”, nome dado à época ao profissional condutor da locomotiva, temeroso com a presença e atitude dos índios, dera partida a toda a
velocidade que conseguira, causando uma tragédia matando a todos, despedaçados
ao longo da ferrovia.

As comunidades
instaladas ao longo da ferrovia, nas suas dificuldades inerentes ao início do
século 20, conviveram com episódios dignos de registro e divulgação; por
exemplo: as donas de casa para lavar as roupas da família, uma vez por semana
dirigiam-se em grupo de dez a quinze mulheres às margens dos rios, tendo ao
lado a protegê-las um dos chefes de família. Esse guardião semanalmente revezava com os outros
da comunidade, no mister de proteger as
lavadeiras do ataque de índios e de onças, mantendo-se armado de carabina em um ponto estratégico, de modo a ver
com antecedência qualquer aproximação do perigo. O guardião, ao fim da jornada
das lavadeiras, à tarde, tinha o cuidado de apagar o fogo da fornalha
improvisada em pedras onde se fervia a roupa a fim de garantir a limpeza, pois
àquela época não havia detergentes ou congêneres, mas, somente o sabão de soda
de fabricação domestica. Aquele cuidado em apagar o fogo era para despistar os
índios, caso aparecessem; da recente presença dos civilizados e evitar possível
perseguição e emboscada.

Nesses quatro
anos de trabalho, findas as aventuras para meu avô, ele se
desligara da companhia e com as economias que conseguira angariar, comprara um
sítio de 20 alqueires no município de Penápolis, casara-se com uma adolescente
de treze anos de idade, por nome Joaquina Flauzina da Costa, minha avó; tiveram
onze filhos, dos quais quatro morreram
na primeira infância, criaram três homens, e seis mulheres, sendo que duas eram adotivas. Anos mais tarde trocara o sítio por
uma chácara na cidade de Glicério distante uns trinta quilômetros, onde
permaneceu até o fim de sua vida.

O penúltimo de seus filhos, Antonio Bento da
Costa, meu tio, sendo o mais novo dos
homens trabalhara em uma serraria desde a infância até em torno de seus trinta
anos, já casado e vivendo junto aos pais na referida chácara. Certo dia Antonio
fora despedido; perdera o trabalho de
toda sua vida até então, mas não baixou a cabeça, a exemplo de seu pai, foi à
luta e começou a trabalhar em uma companhia de recuperação e manutenção da
ferrovia, aquela a qual seu pai ajudara a construir ha muitos anos passados.
Tendo naquela época uma tecnologia avançada à disposição, em se comparando à
época de seu pai, todo o trabalho fluía com muita rapidez e estando Antonio e
sua equipe trabalhando no município de Porto Murtinho, no estado de Mato
Grosso, como que em retrospectiva a seu pai, foram; ele e seus companheiros
hostilizados pelos índios da tribo Xavantes, que insatisfeitos pela
movimentação dos trabalhadores dentro de sua reserva, queriam vê-los fora dali,
apesar de estarem os trabalhadores atuando nos limites da via férrea. Ficaram
por alguns dias sob tenção e medo, reclusos em um vagão de aço da NOB, Noroeste
do Brasil, até que a direção da companhia junto às autoridades locais
negociaram com o cacique dos Xavantes, presenteando-os com facões, espelhos,
panelas e outros utensílios, em troca do livre transito e trabalhos da equipe.

Meu avô,
nesses anos em que vivera como pequeno agricultor, tudo lhe transcorrera com
relativa normalidade para um chefe de família da época.

Estando todos
os seus filhos e filhas já casados, muitos netos e dois bisnetos a acercá-lo em dias de encontros familiares
até que em Agosto de 1967, deixando um legado de coragem, bom caráter e
honestidade, morrera aos 80 anos de
idade, deixando a seus amigos e descendentes a história da sua admirável vida.


Enéas Antonio Pires

Graduado em Letras, Português/Inglês































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